segunda-feira, 25 de abril de 2011

De olho no palco

Daniella Féder


Fãs no show da banda Hevo 84. Foto: Camila Gama


Aparentavam ser todas amigas. Talvez amigas de infância. Pertenciam à mesma faixa etária (12 a 16 anos), vestiam-se de maneira semelhante - quiçá correspondente a alguma tribo urbana -, e estavam ali com um objetivo comum: assistir ao show da banda paulistana December.

A banda, que tem pouco mais de um ano de existência, talvez fosse jovem demais para pensar em estrelismos: encontrava-se reunida ao lado da casa onde logo se apresentaria, facilitando a comunicação com os fãs – para a histeria das meninas. As horas precedentes ao show foram recheadas de fotografias, autógrafos, declarações tímidas, conversas emocionadas e outras “tietagens”.

“Não acredito que os conheci pessoalmente”, exclamava Ana, de 16 anos, indicando os músicos com olhos incrédulos e apertando com força a mão desta repórter.

Era este o cenário do entorno do Hangar Bar, no Largo da Ordem, naquela tarde de domingo. Acontecia, no centro histórico, uma festividade carnavalesca precedente ao carnaval. Um trio elétrico enérgico e animado trafegava pelos calçadões de paralelepípedos e estacionava periodicamente para recuperar o fôlego.

A festa é tradicional na cidade, e as redondezas abrigavam uma multidão generosa de pessoas. Era dia de folia gratuita e a céu aberto em Curitiba. Porém, para os fãs, somente o show assumia cargo de ocorrência respeitável e até mesmo relevante. Nada mais tinha importância.


A December aglomerava, aos poucos, uma quantidade nada humilde de fãs. Na medida em que eles chegavam, agrupavam-se em rodas de conversa. Juntos, contemplavam a banda, tiravam fotografias uns dos outros e uns com os outros, abraçavam-se e até presenteavam-se como podiam – com uma pulseira colorida, um recadinho carinhoso redigido rapidamente numa folha de papel ou uma “tatuagem” escrita na pele à caneta. Pareciam, sim, serem todos amigos. Amigos de muito tempo. Entretanto, acabavam de se conhecer.

Outros conjuntos se apresentavam, em sequencia, no Hangar Bar. Mas este público, especificamente, permanecia em confraternização do lado de fora da casa.

A psicóloga Carine Eleutério esclarece que a adolescência é a fase na qual mais ocorre a formação de grupos de amigos. O critério de seleção é pueril: identificação. “O objeto de desejo desses grupos costuma ser, entre outros, o ídolo. E assim eles se tornam fãs”, comenta Carine.

Já dentro do bar, as amizades pareciam consolidadas. Quem analisasse com um olhar leigo, não saberia dizer o quão efêmera eram no momento. Os fãs, que haviam acabado de compartilhar a atenção da banda, agora trocavam histórias e conheciam-se melhor. Ana tinha feito novos amigos, que possivelmente durariam até o término do esperado espetáculo, que não tardaria a começar.



Assédio

O roqueiro Eliton Przybysz (pronuncia-se “Pchêbs”) é guitarrista da banda Rock’n Roses, que faz cover da histórica Guns’n Roses. Ele sonha em ser um astro do rock. Embora ainda não tenha ascendido às escadarias da almejada fama, já sente o gostinho do assédio das fãs – e adora.

Há três anos, quando Przybysz, que atende pelo nome artístico “Trix”, deixava o palco após um show com sua banda em Paranaguá, foi surpreendido por uma garota que corria em sua direção e pulou nele para beijá-lo, derrubando-o no chão. Sem dizer nada, a moça o levou a um dos banheiros do local onde, após alguns minutos de “amasso”, disse que o irmão a esperava do lado de fora do salão e “mataria” o guitarrista se flagrasse a situação. “Ela me contou que estava indo morar em outro país e que, como tinha me achado ‘gatinho’, se deu ao direito de ser impulsiva. E foi embora”.

Trix com sua guitarra carinhosamente batizada de Natasha, em homenagem à vodca. “No dia em que comprei a guitarra, bebi um litro da vodca Natasha pra comemorar”. Foto: Tay Pilati


O mesmo aconteceu com o DJ Fabio Nascimento - nas festas conhecido como Fabio Ene. Há cerca de seis anos, quando comandava as picapes na antiga casa noturna Moohai, foi derrubado por uma garota que se dizia apaixonada por ele. “A Monica pulou em mim dizendo que me desejava. Nós nos conhecemos melhor e até namoramos por um tempo”.

Nascimento atua como DJ há 16 anos, e expõe que não se acostuma com o assédio das fãs. “É sempre inesperado, elas me pegam de surpresa e tenho que saber fugir da situação”. Ele conta que esse tipo de coisa acontece bem frequentemente, e não gosta. “É desagradável. Sobretudo para mim, que sou casado”.

A surpresa diante do assédio é também recorrente para o baterista da December, Gustavo Paes. “As meninas vêm conversar comigo e querem me abraçar, tirar fotos, pedir autógrafos. Eu sou tímido, e às vezes fico um pouco assustado”.



Denominações

O Dicionário Michaelis descreve o fã como uma pessoa que tem muita admiração por alguém. Mas há pessoas que são mais que apenas fãs: as tietes e as groupies. Ainda que o Michaelis defenda as tietes também como simples admiradoras, elas são vistas como fãs que demonstram um comportamento exagerado.

As groupies, segundo a mesma fonte, são “fãs ou tietes de conjunto de rock que seguem o grupo em suas excursões”. Porém, há músicos que pensam diferentemente. Na concepção de Eliton Przybysz, elas têm a clara intenção de se relacionar com os integrantes da banda. “Muitas vezes elas só buscam envolvimento sexual. Mas existem também groupies que querem fazer amizade, para serem vistas como amigas dos caras da banda”, esclarece o guitarrista.

O longa-metragem “Quase Famosos”, dirigido por Cameron Crowe (o mesmo diretor de Vanilla Sky), retrata o rock setentista contando a história de uma banda que é seguida por um grupo de groupies em uma turnê. São garotas que já fizeram amizade com os integrantes e relacionam-se com eles. A principal delas, Penny Lane – que deixa a entender que mantém relações sexuais com todos os integrantes – tem preferência pelo guitarrista, pelo qual é apaixonada. Todas elas são grandes fãs do grupo e dizem-se as maiores.



O show

December adentrou o palco da casa do Largo da Ordem e cada integrante se pôs em seu lugar. Com algumas batidas de baquetas, Paes anunciou o início da primeira canção. Ligeiramente a pista, que não estava cheia nos shows anteriores, compôs uma paisagem de empurra-empurra; de jogo cujo objetivo era manter a maior proximidade possível com o palco.

Ana, que no início da apresentação ocupava um lugar vantajoso no mezanino, com espaço de sobra e bancos para sentar, logo preferiu se aventurar na pista, onde o metro quadrado estava bastante concorrido. Arrastou algumas novas amigas consigo e sumiu na multidão.

No palco, o vocalista Leonardo Leal, nomeado Coloral e assim conhecido pelas fãs, tietes e groupies, tinha as pernas assiduamente alisadas pelas mãos de meia-dúzia de meninas. As garotas que não ocupavam posições tão privilegiadas gritavam pelos seus integrantes favoritos, levantando as mãos como que para serem vistas do palco. Muitas cantarolavam as músicas, acompanhando as letras.

Após o término da apresentação, os integrantes dirigiram-se ao camarim. Era hora de guardar os instrumentos, receber o cachê e esperar a van que os levaria de volta a São Paulo. Mas, para os fãs, era o última oportunidade de tietagem. Amontoaram-se na porta, na esperança de conseguir entrar. Estavam encarregados de bloquear a passagem um segurança do bar e o produtor da banda, Augusto Guimarães.

“O baterista prometeu que daria duas de suas baquetas para mim e para a minha amiga. Ela é do fã-clube da December!” - justificava Marcela Karoline, de 15 anos.

“Eu só quero um autógrafo” - implorava uma tiete ao segurança.

“Daqui a pouquinho eles saem”, respondia, simpaticamente, Guimarães.

“Quero entrar só para tirar uma foto, juro que não vou incomodar” - uma garota dizia.

“Eles estão trocando de roupa agora, você terá que esperar” – simpatizou novamente.

“Preciso falar com eles uma última vez, antes que meu pai chegue para me buscar” – suplicava outra menina.

-É sempre assim após os shows?
-Você não viu nada... Aqui tem pouca gente – suspirou o produtor, grudado à porta.

Não demorou muito para a banda sair do camarim e dar atenção ao público novamente. O sufoco da entrada do recinto era menor, pois alguns fãs tinham ido embora. Parecia que Guimarães respirava com mais calma.

Grande parte do público que conseguiu o que queria, retirou-se do local. Porém, outra pequena parte fez companhia à banda até que a van chegasse para levá-la embora. Quando eles partiam, não houve choradeira ou despedidas emocionadas. O espetáculo tinha chegado ao fim.



Estilo

O fã Guilherme Henrique Carvalho titula o gênero musical da banda December de “post hardcore”. Paes corrige: “Nos baseamos em bandas de post hardcore, mas nosso estilo é um pouco diferente. Ainda não conheci uma banda que siga uma linha parecida com a nossa”.

Na definição da fotógrafa e produtora de bandas Camila Gama, post hardcore é uma mistura de hardcore melódico com heavy metal. “São músicas bem trabalhadas e cheias de efeitos sonoros, com letras pessoais que costumam ser românticas ou de protesto. O vocal pesado, berrado, mistura-se com a voz melódica”.




Sem limites

Carol* nunca teve a intenção de ser groupie, mas foi o que aconteceu. “Nunca foi uma coisa pensada. Eu só tinha aquela vontade de estar perto das bandas”. Aos quinze anos, foi seduzida pelo mundo dos conjuntos de rock e pela maneira como se divertiam. “Comecei a me envolver com um roqueiro, depois outro e mais outro... Quando percebi, só estava saindo com integrantes de bandas”. Para ela, os músicos eram mais interessantes que os outros rapazes: eram mais liberais e, por onde passavam, tinham o dom de se tornar o centro das atenções.

Ela se tornou conhecida entre eles. Afinal, era figurinha carimbada nos shows. Já não pagava para entrar, embriagava-se sem gastar nada, acompanhava os ensaios, as bebedeiras e as festas particulares. Estas, regadas a muita droga e sempre enfeitadas por mulheres bonitas, provavelmente escolhidas a dedo pelos anfitriões. No universo do rock, o clima da diversão era temperamental: não havia pudor e reinava a regra do “ninguém é de ninguém”.

Ilustração: Rafaela Okada


A melhor amiga nunca a deixava sozinha. Era uma parceira fiel e que compartilhava dos mesmos interesses. As duas se entretiam juntas e não faziam questão de princípios. “Normalmente nós dividíamos a banda e cada uma ficava com dois dos integrantes. Muitas vezes ficávamos com o mesmo cara, mas nunca ao mesmo tempo. Era muito divertido”.

Mas nem tudo eram flores. Carol participou de um concurso para ser capa de CD de uma banda que não conhecia muito bem. A regra era enviar um ensaio de fotos sensuais para o e-mail do grupo. Ela tirou algumas fotos amadoras em casa e oficializou sua participação. Um dos integrantes gostou tanto das fotografias da garota que reproduziu duas delas em forma de tatuagem em seu corpo. Carol ficou encantada e foi até a cidade do rapaz para conhecê-lo.

Mas ele seguia uma religião agressiva: era, segundo dizia, adorador do diabo. A menina chegou até a acompanhar alguns rituais que, conforme o músico, eram característicos da linha que seguia do anticristianismo. Ah, mas ela não levava a sério. Para provar que a religião era séria e exibir-se para a moça, ele cometia atos violentos. Carol narra um deles: “Certa vez, em um show que assistíamos juntos, um homem me paquerou e teve a orelha arrancada por ele. Morri de medo e não voltei mais a vê-lo”.

Hoje, aos vinte anos, ela não tem vergonha de dizer que os dois anos que passou sendo groupie foram a melhor época de sua vida. Mas confessa que, embora nunca tenha acordado arrependida, só se sujeitou a toda essa aventura porque era muito nova. “Ainda não tinha muita consciência das coisas, e acho que era por isso que gostava tanto”.

*Carol é um nome fictício. A personagem preferiu não se identificar.